“Falta coerência quando se exalta uma espiritualidade de “grupo seleto”, ignorando a religiosidade anônima de milhões”
Por mais que a fé seja uma força transformadora na vida de milhões de brasileiros, é preciso cautela quando ela se transforma em vitrine política. Recentemente, o vereador de Divinópolis, Matheus Dias, propôs a criação do Dia Municipal dos Legendários, em homenagem ao movimento cristão que ganhou destaque após a adesão de celebridades e figuras públicas.
Mas afinal, o que é esse movimento? O Legendários é uma iniciativa voltada à formação espiritual de homens cristãos, com foco em discipulado, masculinidade bíblica e valores familiares. Para participar de alguns de seus eventos, homens desembolsam entre R$ 400 a R$ 80 mil reais, em encontros que reúnem desde retiros espirituais até grandes produções que misturam fé e performance.
Em Divinópolis, o movimento também ganhou o apoio público do prefeito Gleidson Azevedo, que compartilhou sua participação e identificação com a proposta dos Legendários. O problema, no entanto, não está no movimento em si. A espiritualidade é uma escolha pessoal, e cada homem adulto é livre para buscar o caminho que melhor traduz suas crenças. Participa quem deseja. Integra quem quiser.
Isso não é uma critica ao movimento, muito menos sobre a participação do prefeito. Tudo isso tem o respeito. É sobre o projeto que cria uma data comemorativa em meio a tantas urgências.
E, não pense você que é apenas em Divinópolis. Em Belo Horizonte, falta apenas o prefeito Álvaro Damião vetar ou sancionar a lei que institui o Dia dos Legendários.
Espiritualidade mesmo sem subir ao monte
Transformar isso em uma homenagem oficial, por meio de uma lei municipal, é um deboche com a sociedade, especialmente com aqueles que enfrentam, diariamente, a dura realidade de um país desigual, que exige dos cidadãos, especialmente os mais pobres, verdadeiros malabarismos para sobreviver.
Falta coerência quando se exalta uma espiritualidade de “grupo seleto”, enquanto se ignora a religiosidade anônima de milhões que, na prática e no silêncio, sustentam suas famílias com fé, empatia, e trabalho duro.
Espiritualidade está nas ações diárias de quem pratica a compaixão, o cuidado e o sacrifício, mesmo sem subir ao monte ou participar de retiros caros.
Pensemos nas mulheres. Mães, esposas, filhas e avós que vivem a verdadeira política do cuidado. Que se multiplicam entre o trabalho dentro e fora de casa, que educam filhos, mantêm lares em pé e ainda arrumam tempo para orar. Sua espiritualidade não precisa de palco nem microfone. É íntima, real e poderosa. Dificilmente “sobem ao monte”, pois as tarefas do dia não permitem. Mas isso não as torna menos espirituais.
Estamos vivendo uma preocupante inversão de valores. O discurso cristão não pode ser usado para promover vaidades ou favoritismos institucionais. Com o devido respeito ao vereador Matheus Dias – que esteve e está a frente de projetos relevantes para a sociedade, que já apresentou projetos importantes, como o combate a conteúdos inadequados nas escolas, é preciso reconhecer que tudo tem um limite.
Exaltar a fé de poucos enquanto se invisibiliza a fé do povo comum é elitismo disfarçado de espiritualidade.
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Dia dos legendários x Dia da sobrecarga da mulher
Se é para instituir um dia comemorativo, que se pense em homenagear o pai de família que trabalha 12 horas por dia para ganhar um salário mínimo e ainda tem forças para ensinar valores aos filhos. Que se valorize a mulher sobrecarregada, que encontra tempo para rezar entre uma obrigação e outra. Que se reconheça a fé dos que dobram os joelhos na calada da noite, e não a dos que brilham nos stories de influenciadores.
A política precisa retomar o foco nas pautas essenciais, ou seja, saúde, educação, mobilidade, moradia, segurança e combate à desigualdade.
A fé pode inspirar decisões, sim. Mas jamais deve ser instrumentalizada para promoção pessoal ou institucional. Quando isso acontece, não é Deus que está sendo exaltado. É o ego.
#OPINIÃO